A partir de Lolita

O que gosto em Lolita não é tanto sua história, sobre um homem de meia-idade que se apaixona pela menina de 12 anos, com quem se relaciona amorosamente, ou o texto de Nabokov, que prima em estilo e ironia. Não estou a dizer que estes, narrativa e texto, sejam, em minha parca avaliação, ruins. Pelo contrário, pululam na obra trechos memoráveis, daquele tipo especial que os leitores procuramos gravar na memória depois de recitá-los repetidas vezes, trechos absolutamente irretocáveis e, talvez, dos mais belos dentre os que encontramos na literatura mundial:

“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.

Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir os jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita.”.

“Minha única queixa contra a natureza era não poder eu virar a minha Lolita pelo avesso e aplicar vorazmente os meus lábios ao seu jovem útero, ao seu desconhecido coração, ao seu fígado nacarino, às uvíferas marinhas de seus pulmões, aos seus graciosos rins.”.

“Eis aqui, pois, a minha história. Eu a reli. Ela contém fragmentos de medula – e sangue, e belas e brilhantes moscas azuis”.

O que gosto em Lolita é, para além da história e do texto, o próprio desfecho do relacionamento entre Humbert e Lolita: a tragédia, já anunciada no prefácio do livro, se adensa a cada página, a cada milha rodada, hotel a hotel. O que acompanhamos, na viagem pelo país que o casal empreende, é a descida acelerada ao inferno, com o detalhe de não haver uma Beatriz para recebê-los ao final. A alegria prometida aos amantes através da paixão manifesta no início transmuta-se rapidamente em dor – que se torna absoluta e esvazia-os de prazeres. E no fim, restam somente os personagens destroçados (“fucking broken”, numa expressão em língua inglesa) pela relação que experienciaram, e as ruínas, que lhes lembram incessantemente daquela promessa de felicidade e, como monumentos, não lhes permitem esquecer aquilo que viveram.

Personagens que não saem incólumes daqueles afetos vividos, e nem são salvos por esses, mas justamente arruínam-se através e por causa desses afetos, transbordam na literatura. E talvez não seja exagero afirmar que as grandes histórias de amor, as que precisam ser lidas, são justamente as que narram a destruição dos amantes e de suas paixões. Otelo e Desdêmona, a menina má de Vargas Llosa, Fausto e Margarida, Capitu e Bentinho… Por meio da tragédia, seus autores nos lembram de abandonar qualquer esperança, como admoestava a inscrição no pórtico (“Lasciate ogni speranza / voi che entrate!”), pois que, cedo ou tarde, o fim se realizará – e os afetos, experienciados, extinguir-se-ão.

É como se esses autores tivessem, diante de seus olhos, o tempo todo, aquela citação de Anaximandro: “Onde as coisas têm a sua origem – é lá também que devem perecer, por necessidade; pois devem fazer penitência e redimir-se de suas injustiças, conforme a ordem do tempo.”. A finitude da existência, tudo o indica, é para o filósofo sintoma da injustiça dessa existência, pois que essa cessará. Tudo o que se construiu ao longo dessa existência, e tudo que se sentiu, desaparecerão no tempo. Tudo o que teve uma origem é destinado, desde seu início, à extinção. É o que Nietzsche, em sua interpretação da filosofia de Anaximandro, escrevera: “Tudo que alguma vez veio a ser logo volta a perecer […]: em toda parte […] poderemos, segundo uma terrível evidência empírica, profetizar o ocaso […]”.

É isso o que gosto em Lolita, a operação de lembrar-nos que toda alegria será expiada. Só o que nos resta é a vivência, trágica, das experiências – o que Anaximandro denominara “penitência”. Vivê-las, sabendo desde o início que cessarão e, quando cessarem, passarem a produzir dor.

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Uma resposta para A partir de Lolita

  1. Anônimo disse:

    “As histórias de amor mais impossíveis, são as mais bonitas.” b

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